Entre a teoria e a realidade
Luiz Augusto Pereira de Almeida*
Recente editorial do conceituado jornal O Estado de S.Paulo, em seu Caderno Metrópole – Notas e Informações, sob o título “Não é por falta de aviso”, contém informações relevantes sobre contingente numeroso da população brasileira que vive em áreas de risco, sujeitas a inundações, deslizamentos, seca e estiagem. O texto reforça que, diante das mudanças climáticas a que estamos assistindo, urge que as administrações públicas removam as pessoas dessas zonas vulneráveis, que são conhecidas, sob pena de contabilizarmos futuros acidentes plenamente evitáveis. E, por fim, a matéria destaca que, por falta de planejamento urbano, as ocupações ilegais avançaram rapidamente entre 1985 e 2022, descumprindo os preceitos legais da Lei de Parcelamento do solo, de 1979.
Pois bem, os dados levados à evidência pelo artigo não surpreendem e são fruto das opções que foram eleitas e vêm sendo adotadas em nosso país, nos últimos 50 anos, para o processo de urbanização, uso e ocupação do solo. Um projeto de parcelamento do solo, em qualquer município brasileiro, demora atualmente, em média, de três a quatro anos para ser aprovado. Alguns, dependendo de sua localização e porte, levam muito mais, chegando a mais de década. São inúmeras as providências que o empreendedor tem de atender para levar legalmente adiante o seu loteamento, sejam de ordem administrativa, legal ou ambiental.
As exigências ambientais, nos últimos 30 anos, foram surgindo ininterruptamente nas esferas municipal, estadual e federal, tornando uma via crucis o processo de aprovação de um empreendimento de parcelamento do solo. Por outro lado, o crescimento das cidades brasileiras não está submetido a qualquer lei. Sua população tem aumentado constantemente, atingindo em determinadas regiões índices superiores a 90%. As milhares de pessoas que chegam aos centros urbanos, ano a ano, dia a dia, para procurar trabalho ou melhores condições de vida, não contam com oferta suficiente de moradias. Esse é um processo histórico. A produção imobiliária nunca conseguiu atender a tempo e à hora o crescimento demográfico vegetativo e a migração. Estima-se, hoje, um déficit de sete milhões de moradias.
Porém, em vez de agilizarmos as aprovações de novos projetos, pela própria experiência, estamos, cada vez mais, tornando-as mais difíceis e onerosas. Pior: com essa demora e imposições, elitizamos os empreendimentos, tornando-os paulatinamente mais caros e inacessíveis à maior parte da população.
O processo de favelização ou ocupação de áreas de risco decorre de uma falta de sintonia entre a teoria e a realidade. Na teoria, temos exigências urbanísticas e ambientais de uma nação desenvolvida, sendo que, na categoria da ecologia, o Brasil conta com uma das legislações mais restritivas do mundo. Mas, na realidade, vivemos num país emergente, que ainda está longe de atender sua população de maneira minimamente sustentável. É só vermos quantas pessoas não têm disponibilidade de água tratada ou coleta e tratamento de esgoto. São milhões de brasileiros que estão distantes de um saneamento básico suficiente para uma vida saudável.
A falta de moradias em locais próximos ao trabalho obriga a população a residir cada vez mais longe, na maioria das vezes em locais impróprios, dificultando seu acesso a serviços públicos básicos, como saúde, educação e segurança, sem contar o estresse da mobilidade urbana, que submete as pessoas a horas de ônibus ou metrô durante anos de suas vidas. O mais grave é que esse problema sobrecarrega a administração pública, obrigando-a a investir em locais cada vez mais distantes e tutelar esse contingente desprovido de qualquer infraestrutura.
E quais as perspectivas de melhorarmos isso a curto e médio prazo, retirando as populações das áreas de risco e as alocando em locais com infraestrutura básica, que garanta uma vida mais sustentável? Ou de considerarmos as mudanças climáticas como elemento que agrava a situação de risco daqueles que vivem em áreas objeto de ocupações ilegais? Ou, ainda, de adotar soluções para que tragédias ambientais sejam evitadas? Nenhuma possibilidade!
Para que esses avanços se viabilizassem, nosso país teria de adotar caminhos muito distintos dos que hoje nos são oferecidos. O processo da aprovação de empreendimentos teria de ser muito mais rápido, inferior a um ano. As exigências ambientais deveriam ser focadas em cada empreendimento, dada a sua localização e porte, dentre outras características.
A autonomia municipal e o interesse local deveriam ter muito mais relevância para efeitos de aprovação de projetos e recuperação do déficit populacional brasileiro. Para que as sugestões apresentadas pelo artigo de O Estado de S.Paulo possam ser adotadas, precisamos mudar radicalmente nossa maneira de legislar sobre o uso e ocupação do solo. Caso contrário, como a própria matéria alerta, continuaremos a assistir a uma escalada de tragédias ambientais. Quem viver, verá.
*Luiz Augusto Pereira de Almeida é diretor da Sobloco Construtora e membro do Conselho Consultivo do Secovi.