“Mulheres não são obrigadas a absolutamente nada que não queiram”

Na última reportagem da série especial sobre o Dia da Mulher, a Tribuna traz uma entrevista com a delegada Gabrielle Amaral, responsável pela Delegacia da Mulher de Cianorte, e mostra que é possível dar a volta por cima. Há ainda relatos sobre mulheres que viveram durante anos em situação de violência, mas que hoje têm consciência do seu valor perante a família e a sociedade, além de aprenderem, pouco a pouco, a superarem o trauma e se amarem.

A Delegacia da Mulher de Cianorte atua desde junho de 2016 atendendo para assegurar tranquilidade à população feminina vítima de violência. Se por um lado a mulher vem ocupando espaço no mercado de trabalho e voz social, por outro, é recriminada e violentada sistematicamente por não se adequar ao estereótipo de submissão exigido por seu gênero. No município, 330 boletins de ocorrência já foram registrados e, deste total, apenas 150 resultaram em inquéritos judiciais.

No Paraná, apenas 20 cidades contam com a Delegacia da Mulher. Para a delegada Gabrielle Berwig Amaral, que comanda a unidade de Cianorte, o número é extremamente baixo e dificulta a atenção dada aos crimes de violência doméstica. É preciso não apenas investigar criminalmente como também dar suporte e auxílio social a essas mulheres violentadas sistematicamente e durante muito tempo, diz.

De acordo com a delegada, a grande dificuldade das mulheres em realizar a denúncia é por conta de morarem com o agressor e não terem para onde ir, principalmente acompanhadas de filhos. Muitas acham que eles vão melhorar, mesmo depois de muito tempo sofrendo violência de diversos tipos. A maioria do nosso público é de mulheres que não têm condições financeiras, dessa maneira, as encaminhamos para defensoria pública para saberem dos direitos na área civil também, afirma.

Segundo Gabrielle, muitas mulheres desistem de prosseguir com a denúncia por medo ou por acreditar que o agressor irá mudar. Quando a ação depender da manifestação da vítima, é preciso que ela autorize a prosseguir com o inquérito, então depende de uma decisão dela. Muitas fazem apenas o boletim de ocorrência e pedem medida protetiva, mas não seguem adiante com a representação criminal, explica. Ela acrescenta que crimes como lesão corporal pela Lei Maria da Penha a ação segue independente da vontade da vítima.

Muitas vezes os agressores culpam a vítima pelas atitudes deles, acrescenta a delegada. ’Eu te agredi porque você olhou para o lado’, ‘te injuriei porque você fez aquilo’ e, na cabeça de muitas, isso acaba sendo merecido. Elas pensam: ‘eu realmente andei com vestido curto, eu mereço que ele me difame’, diz. Ela ainda reforça que muitos homens reclamam da lei e do atendimento diferenciado para as mulheres. ’Doutora, eu acho injusto que nós homens não temos uma lei que nos proteja’, mas se a gente perceber é histórica a relação de desigualdade entre os gêneros, e a lei não quer aumentar esse abismo.

A delegada acrescenta, também, que outra grande naturalização no Brasil é acreditar que não existe violência sexual entre marido e mulher. É importante reforçar que as mulheres são donas dos seus corpos. Elas não são obrigadas a absolutamente nada que não queiram, afirma.

 

MAIS DENÚNCIAS

Segundo a delegada, não existe um parâmetro de comparação para saber se as denúncias aumentaram após a criação da Delegacia da Mulher em Cianorte. Antes [da implantação da Delegacia da Mulher] elas se sentiam mais constrangidas, então sabemos que o atendimento facilitou, mas não conseguimos mensurar se os casos de violência aumentaram ou se agora elas estão denunciando mais, diz.

 

RECOMEÇO

Muitas mulheres são atendidas pelo grupo de apoio da Defensoria Pública de Cianorte e são auxiliadas por diversos profissionais como psicóloga e assistente social para que seja possível se fortalecer e se recuperar de uma relação abusiva. A psicóloga Aline Daniele Hoepers relata dois casos para que sirvam de inspiração a outras mulheres.

M. começou a frequentar o grupo de apoio em junho de 2015. Com baixa autoestima, trazia ideias como a vida inteira eu achei normal ter que me subordinar aos homens e o perdoava pelas agressões físicas porque sempre acreditei que ele pudesse mudar e parar de beber. Com o apoio do grupo e o acompanhamento, começou a perceber a violência de outra maneira e compreendeu que, além da física, também sofria a psicológica e patrimonial, e que todas geravam graves consequências. Depois de alguns meses, ela pediu para que o marido fosse orientado sobre como se livrar o álcool, já que a substância era grande motivadora dos ataques. Com atendimento de escuta e orientação realizado pela psicóloga, ele foi encaminhado ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). O marido está em acompanhamento, demonstrando significativas evoluções quanto ao tratamento psicológico e psiquiátrico referente ao uso de álcool. Ele voltou a trabalhar e não agrediu mais M. O casal está reconstruindo a relação.

Outro caso atendido pelo grupo é o de P., que sofria intensas ameaças, violência moral e psicológica por parte do ex-companheiro. Ela apresentava sintomas de depressão, mesmo após dois meses de rompimento da relação, e desejava trabalhar as consequências psicológicas e sociais geradas pelas violências vividas por 16 anos. Juntamente com o acompanhamento em grupo, ela também passou a ser atendida por um psicólogo da Unidade Básica de Saúde. Pouco a pouco, através das orientações, do apoio e do acompanhamento contínuo recebido, desenvolveu autoconfiança, formou vínculo de amizade com outras duas mulheres que participam dos encontros, fortalecendo sua rede social de apoio. Ela também retomou os estudos, demonstrando um movimento importante de reconstrução de projetos de vida. No último encontro de 2016 do grupo disse que se sentia pertencente ao grupo no qual foi acolhida e orientada. Acrescentou que passou a se reconhecer e descobriu que diferente de tudo que já viveu, hoje se sente feliz.  Atualmente, ainda faz o acompanhamento psicoterapêutico na UBS e também frequenta o Grupo de Mulheres da Defensoria Pública de Cianorte.