Auditorias, fraudes e expectativas do mercado e da opinião pública
Valdir Coscodai*
As pesquisas têm demonstrado que, mesmo com programas antifraudes implementados pelos gestores das empresas e o trabalho de auditores independentes, esses problemas continuam acontecendo. A pergunta que não quer calar é por quê? A primeira reflexão é que eliminar ou minimizar a ocorrência dessas nocivas situações exige o trabalho coordenado de vários atores e ações da administração e dos responsáveis pela governança, na implementação de uma cultura ética, controles internos responsivos e programas de compliance. Depende, ainda, do desempenho dos auditores internos e auditores independentes, da edição de leis eficazes pelos governos, de ações de órgãos normalizadores, de supervisão e reguladores.
A auditoria independente objetiva obter segurança razoável de que as demonstrações contábeis como um todo estão livres de distorção relevante, independentemente se causadas por fraude ou erro, para emissão de sua opinião. Sozinha, contudo, não é suficiente para mitigar problemas gerados nos controles internos da empresa, fraca governança ou legislação ineficiente. Neste momento, o International Auditing and Assurance Standards Board (IAASB) tem um projeto na agenda para discutir o que pode ser feito nos trabalhos de auditoria no âmbito do tema. O propósito é aferir a eventual necessidade de novas normas e outras ações.
Em meio a pesquisas e debates internacionais com uma ampla gama de stakeholders, têm surgido alguns insights interessantes, que levam a uma segunda reflexão: apesar de existirem diferentes definições sobre as lacunas no que tange às expectativas da sociedade na literatura, elas podem ser definidas, de maneira geral, como “a diferença entre o que o público em geral pensa que os auditores fazem e o que gostaria que fizessem”. Esta é uma definição bem ampla, proposta pela Association of Chartered Certified Accountants (ACCA).
Quando surgiu o conceito de expectation gap em 1974, delineado por Carl Liggio, a definição era um pouco mais limitada, como sendo a diferença do nível de expectativa de desempenho percebido pelo usuário das demonstrações contábeis e pelos auditores. Em 1978, o American Institute of Certified Public Accountants (AICPA) também apresentou esse conceito, em relatórios produzidos pela Comission on auditor’s responsabilities (CAR). Como a diferença de expectativas possui muitas particularidades, a ACCA apresentou uma definição atual e segmentada dos gaps em três abordagens: a de conhecimento, o de desempenho e o de evolução. Os conceitos abordados nessa publicação são utilizados pelo IAASB em seu Discussion Paper.
O gap de expectativa gerada pelo conhecimento está relacionado às diferenças entre o conhecimento dos usuários de informação contábil e auditores: a percepção do público sobre a atuação da auditoria e o que de fato é função e responsabilidade dos auditores independentes geram esse gap. O desconhecimento sobre o que é requerido do auditor faz com que o público tenha uma expectativa irreal de que toda e qualquer irregularidade, mesmo que imaterial, deveria ter sido coibida e impedida por esses profissionais.
A diferença das expectativas entre o que se espera do trabalho de auditoria e o que os padrões e/ou legislações existentes exigem é abordada pelo gap de desempenho. Este pode ser proveniente da falta de clareza ou complexidade de certas normas, diferentes interpretações delas ou baixa qualidade nos trabalhos em decorrência de despreparo ou falta de treinamentos da equipe responsável pela auditoria.
O uso de novas tecnologias e as dificuldades de alinhar sua aplicação na auditoria definem o evolution gap. É o caso do Big Data, Data Analytics e Machine Learning. Um exemplo do impacto desse gap é demonstrado pelo esforço do IAASB em criar um grupo de estudo e discussões acerca do uso de tecnologias na auditoria.
Embora a análise do expectation gap proposta pela ACCA esteja voltada primariamente para a auditoria, cabe destacar que o “ecossistema” dos relatórios financeiros envolve a gestão e governança das empresas, auditores internos e auditores independentes, reguladores e autoridades. É importante que os usuários dos relatórios financeiros entendam esse “ecossistema” para discussões mais abalizadas. Todos os fatores que compõem são relevantes no combate às fraudes e redução de gaps de expectativas: estabelecimento de uma cultura ética, com adequados controles internos monitorados; eficaz governança corporativa; auditores internos e externos qualificados e atualizados; legisladores e reguladores que emitam normas suficientemente exigentes e que realizem supervisão periódica; e um Judiciário que atue dentro de seu papel e julgando com consistência, imparcialidade e agilidade.
Um posicionamento ativo para redução de fraudes é um ponto relevante que deve ser buscado por todas as partes: as diferenças de expectativas, nas três dimensões propostas, podem estar presentes para cada um, de acordo com o seu papel. Portanto, não afetam apenas a credibilidade da auditoria, mas a confiança nas informações, no mercado como um todo e, enfim, na sociedade.
*Valdir Coscodai é presidente do Ibracon – Instituto dos Auditores Independentes do Brasil.